quinta-feira, 29 de março de 2007

"Poema"

"Em todas as ruas te encontro,
em todas as ruas te perco.
Conheço tão bem o teu corpo,
sonhei tanto a tua figura,
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura,
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura.
Tanto, tão perto, tão real...
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento,
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu,
onde um braço teu me procura.

Em todas as ruas te procuro,
em todas as ruas te perco."

Mário Cesariny, Pena Capital (1982)

terça-feira, 27 de março de 2007

"Confissões"


"(...) Tinha também, ao mesmo tempo, uma paixão violenta pelos espectáculos do Teatro, que estavam cheios das imagens das minhas misérias, e das chamas amorosas que alimentavam o fogo que me devorava. Mas qual o motivo que faz com que os homens acorram com tanto ardor, e que queiram experimentar a tristeza olhando coisas funestas e trágicas que, apesar de tudo, não quereriam saber? Porque os espectadores querem sentir a dor, e dessa dor o seu prazer? (...) Mas que compaixão se pode ter para com as coisas fingidas e representadas num Teatro, uma vez que não se excita o auditor para socorrer os fracos e oprimidos, mas sim este convidado que se aflige com o seu infortúnio? Que ele fica tanto mais satisfeito com os actores quanto mais eles o comoveram com pena e aflição; e que, se estes sujeitos trágicos, com as suas infelicidades verdadeiras ou supostas, são representados com tão pouca graça e indústria que não o afligem, sai desgostado e irritado com os actores. Que se, pelo contrário, for tocado com a dor, fica atento e chora, experimentando, ao mesmo tempo, o prazer e as lágrimas. Mas dado que todos os homens naturalmente desejam alegrar-se, como podem gostar dessas lágrimas e dessas dores? Não será que, ainda que o homem não sinta prazer pela miséria, no entanto ele sinta prazer a ser tocado pela misericórdia: e que, dado que não pode experimentar esse movimento da alma sem experimentar a dor, acontecerá que, por uma consequência necessária, ele acarinhe e goste dessas dores? (...)"

Confissões, Santo Agostinho (400 d.C.)


Em homenagem a uma das mais belas formas de arte da Humanidade.

27 de Março - Dia Mundial do Teatro

domingo, 25 de março de 2007

A outra realidade...


Sonho.
Quando brilha...acordada.

No escuro...aluada.

Enfim, vou sonhando por aí.

Sonho.

Bem alto pelas estrelas,
em relevo pelos
planaltos da minha imaginação.

Sonhos? São teias de fantasia
,
projectadas numa tela magnética

com cheiro a maresia.
Sonhos? São quadros torcidos,
irreais, fatais,
intemporais,
de efeitos sortidos.
Sonho.

Vagueio pelo dia...
enlouqueço à noite!
Antes da aurora,

a inércia de quem não adormece,

afoga o tempo, a acção e
tudo por ali se esquece.
Acordo!
E nada por aqui acontece...

LiliFlor

sexta-feira, 23 de março de 2007

Mudança


Subitamente, algo invadiu o meu corpo,

a minha alma...a minha vida!
Uma suave brisa de mudança penetrou
no meu espaço existencial.
Tentei explicar o inexplicável e lutar contra essa brisa
desconhecida, mas ao mesmo tempo tão familiar...
não consegui, pois fiquei desarmada perante
esse sinal de mudança anunciada.
Deixei-me conquistar por palavras, gestos e melodias
que me envolveram numa suave teia de ternura.
Tudo era novo... rapidamente
esqueci o Passado e lembrei-me de mim!
Tudo ficou mais simples: eu era eu e tu eras tu,
num mar de emoções, sem complicações...

LiliFlor



quinta-feira, 22 de março de 2007

E porque hoje é o Dia Mundial da Água...

"Lição sobre a água"

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas a vapor.
É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.
Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

António Gedeão

Será?



"Eu"

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada...a dolorida...

Sombra de névoa ténue e esvanecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que a chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca, Livro de Mágoas, (1919)